APÓS A MORTE - CAPÍTULO 6

Um copo preenchido até a metade com licor de cereja é colocado sobre o balcão. Lucas saboreia sua bebida enquanto espera Mirian.

Uma mão o toca no ombro.

- Sente-se.

A garota se senta.

- Como sabia que era eu?

- Reconheci a energia no seu toque. Percebi que era você.

- Sério?

- Sim. Por quê?

- A energia de um ser é única, não existindo duas almas iguais. Apesar disso, não é comum anjos jovens como você sentirem a energia de outro anjo, e muito menos reconhecerem os outros apenas pelo toque.

- Mas eu não sinto todos. Apenas você e isso quando estamos próximos ou quando nos tocamos.

- Acho que isso acontece porque estamos convivendo muito tempo, e estamos nos acostumando um com o outro.

- Pode ser que seja isso. O que vai beber?

- Nada. Precisamos ir agora. Hoje você vai aprender algo novo e muito importante. Então vamos nessa.

Lucas pega seu copo e bebe todo o restante de seu licor.

- Está bem. Vamos.

***

Os dois anjos estavam dentro de uma padaria. Lucas sabia que Mirian sempre o levava com antecedência até o local onde ele iria trabalhar. Por isso ele decidi aproveitar o tempo da espera para conversar com ela.

- Você já viu Deus? – Ele pergunta.

- Não. Nunca o vi.

- Por que não?

- Porque não sou evoluída o suficiente.

- Como assim?

- Deus fica no centro do céu observando e cuidando de todo o universo. Só quem pode vê-lo são os anjos que atingiram os níveis mais altos na evolução espiritual.

- E por que isso? Não somos dignos?

- Não tem nada haver com dignidade. Deus é feito da energia original. Uma energia muito grande e principalmente muito poderosa. A partir de sua energia ele criou tudo no universo incluindo a sua, a minha e as almas de todos os seres. Todos nós somos feitos a partir da energia de Deus.

- E o que tem isso?

- A energia dele é muito poderosa para almas jovens e pouco evoluídas como as nossas. Se ficarmos diante de Deus seriamos destruídos. Por isso somente os anjos que conseguiram atingir um grau elevado na evolução espiritual podem estar na presença de Deus.

- Mas o que é essa evolução espiritual que eu não entendo? O que muda quando você evolui?

- Como eu disse a energia de Deus é a energia original. Ela está no grau mais elevado e mais poderoso que existe. Quando ele criou as almas, ele as fez a partir de sua própria energia, ele as moldou de si mesmo. Só que existe uma diferença, ele fez as almas em um grau de poder muito menor. Nossa energia é muito mais simples e delicada do que a de Deus.

- Isso eu consigo entender.

- Pois bem, se almas de energia mais simples, como as nossas, ficarem diante da energia espiritual de Deus, a diferença entre elas causara uma espécie de repulsão originada do antagonismo delas, o que nos destruiria por sermos mais simples.

Lucas observa Mirian, pois tem certeza de que ela ainda não acabou.

- E é daí meu caro aprendiz que surge a evolução espiritual. Evoluir significa elevar sua alma até um nível cada vez mais próximo da energia de Deus. A sua jornada espiritual é uma jornada para voltar ao seu estado natural, ao estado mais puro que existe, uma jornada para voltar a estar com Deus.

- Agora sim entendi. – Lucas olha com ternura para Mirian – Você é uma excelente mestra. Sempre consegue me explicar tudo de uma forma que eu entenda.

- Não sou eu quem sou uma boa mestra Lucas, mas sim você quem entende tudo com facilidade. – Ela retribui o olhar de Lucas – Você será um grande anjo, tenho certeza disso.

- Obrigado. – Ele responde corando - E você sabe quantos anjos já estiveram na presença de Deus?

- Não. Os únicos que sei que já estiveram na presença Dele são os arcanjos e os originais.

Lucas olha para Mirian totalmente perdido, sem saber do que ela estava falando.

- E o que seriam arcanjos e originais?

- Basicamente arcanjos também são originais. Os originais são os primeiros anjos criados por Deus. Eles foram criados diretamente como anjos e não como humanos, e foram criados para ajudar a Deus no começo de tudo e principalmente proteger a humanidade. E os arcanjos são os mais poderosos e importantes anjos do céu.

- E você conhece algum deles?

- Sim.

- Sério? Qual?

- Gabriel. Ele é o chefe de todos os anjos da guarda.

- E quais são os outros arcanjos?

- Miguel, o General dos exércitos do céu, Rafael, o Diretor da prisão do céu, Lúcifer, o primeiro anjo caído e o Gabriel. Esses quatro são os primeiros arcanjos e também os anjos mais antigos do céu. Eles são os mandachuvas aqui.

- Espera, você citou quatro arcanjos que são os mandachuvas, mas nenhum deles é o chefe dos ceifeiros. Isso me faz pensar, quem é o nosso chefe então? Achei que ele seria um dos mandachuvas.

- Não vamos falar dele agora. Mas você saberá sobre ele em breve, eu prometo.

- Tudo bem. E quem são os outros originais?

- São anjos criados no começo, assim como os arcanjos, porém, eles não estão no mesmo nível dos primeiros arcanjos.

- E só existem esses quatro como arcanjos?

- Não tenho certeza se outro anjo conseguiu chegar ao nível de arcanjo.

- Como assim nível?

- Veja bem, os anjos tem níveis de desenvolvimento. Você é um aprendiz. Quando você estiver pronto você chegará ao que chamamos de terceiro grau, será um ceifeiro de terceiro grau. Depois vem o segundo grau e o primeiro e para alguns poucos vem o grau de arcanjo e no mais alto grau vem o que chamamos de cosmos.

- Cosmos? O que seria isso?

- É o mais alto grau que a alma pode atingir. É quando se atingi o máximo na evolução, e sua energia se torna igual à de Deus. Nesse estágio você permanece com Deus constantemente, é o que os humanos chamam de encontrar a paz.

- Isso é meio complicado não é?

- É sim. Mas não se preocupe. Você vai ter muito tempo para entender tudo isso. Você está apenas começando essa etapa da sua jornada espiritual. Pode ficar tranquilo, com o tempo você entenderá tudo.

- Está bem. – Lucas sorri para Mirian.

Mirian olha para a porta da padaria e Lucas acompanha seu olhar. Um jovem entra no estabelecimento. Ele usava uma camisa vermelha, calça jeans e tênis. Parecia ser filho de uma pessoa rica. No balcão estava uma moça e no caixa um senhor de cabelos brancos. O jovem se dirige diretamente para o caixa. Ele saca uma arma e aponta para a cabeça o senhor.

- Passa a grana agora! E rápido!

Lucas fica preocupado. Ele não queria ceifar aquele senhor nem aquela garota. O senhor passa a grana para o homem que a pega e então bate com a arma na cabeça do senhor. O assaltante corre para a porta da padaria e então...

Bum!

O estrondo de um tiro, o assaltante cai no chão, em sua testa um buraco do qual sai uma grande quantidade de sangue. Um policial aparece com uma arma na mão. Ele corre para checar o pulso do homem e depois liga para a emergência. Naquele momento Lucas percebe porque a missão daquele dia seria diferente. Ele estava prestes a levar alguém para o inferno, e por algum motivo ele se sentia bem por não ser aquele senhor ou aquela moça quem ele deveria ceifar.

Lucas se aproxima do ladrão, o toca e então vê toda a vida dele. Um filho de juiz, que sempre teve tudo, mas que era cruel com as pessoas, arrogante, mau caráter. Achava que por ser filho de um juiz era melhor do que os outros e que podia fazer o que bem entendesse. Mas ter tudo não era o suficiente. Ele havia se juntando com seus amigos ricos e começado a roubar e machucar pessoas. Na visão dele elas se quer deveriam chamar a polícia, pois estavam tendo a honra de serem agredidas por ele.

O anjo rompe o fio da vida daquele rapaz. Lucas se levanta e ao olhar para o lado vê a alma dele parada ali em pé. O rapaz se desespera ao ver seu corpo caído no chão.

- O que é isso? O que está acontecendo aqui? – Ele pergunta desesperadamente.

- Você está morto. – Lucas responde – Meus parabéns.

- Você é louco cara! Louco! – O rapaz grita para Lucas e Mirian e depois sai correndo da padaria.

- Precisa de ajuda? – Mirian pergunta a Lucas.

- Basta eu me concentrar não é mesmo?

- Basicamente.

- Então não preciso de ajuda. – Lucas se vira de costas para Mirian e então some.

O rapaz estava correndo pela rua enquanto olhava para todos os lados. Quando ele olha para frente se depara com Lucas, assustando-se e caindo ao chão.

- Como você chegou até aqui? O que você quer de mim? Quem é você?

- Eu sou um ceifeiro. E estou aqui para te levar.

- Me levar para onde? Você não vai me levar para lugar nenhum. Saia de perto de mim seu demônio. – O rapaz corre na direção oposta de Lucas. Ele olha para traz e vê que Lucas sumiu, quando olha para frente encontra o ceifeiro novamente.

Lucas agarra o ombro do rapaz – Vamos! – E os dois somem.

O pavor do rapaz aumenta ainda mais quando ele percebe que não estava mais no meio da rua, mas sim em uma espécie de caverna. Na frente dele um imenso portão de cobre, com cerca de vinte metros de altura e dez de largura.

Lucas observa o lugar curioso. Para ele aquilo também era uma novidade. Ele havia se concentrado para ir ao inferno, porém aquele lugar não se parecia nada com o que ele esperava. Quando ele estava prestes a retornar para junto de Mirian para pedir ajuda, o portão de cobre começou a se abrir. No interior Lucas viu apenas uma terra sombria. Vultos se movimentavam por ela, esgueirando-se.

Um forte vento começa a soprar para dentro dos portões, sugando com muita força tudo que estava dentro da caverna. Lucas não sentia os efeitos do vento, era como se aquilo fosse apenas uma brisa para ele, mas para o rapaz era diferente.

O rapaz começa a ser arrastado para dentro dos portões, ele tenta se segurar em uma pedra, lutando para não ser arrastado para as trevas.

- Por favor, me ajude! – Ele grita desesperadamente. Mas Lucas apenas observa enquanto o rapaz é arrastado para dentro e os portões se fecham lacrando-o no inferno.

- Você gostou disso não foi? – Lucas escuta a voz de Mirian atrás dele em um tom acusatório.

- Sim, eu gostei! – Ele responde.

- Pois não deve. Anjos são apenas agentes dos céus, ferramentas para os desígnios de Deus. Nós não julgamos e não nos alegramos com o destino das outras almas.

- É claro que nós julgamos. É o que mais fazemos, julgamos, absolvemos ou condenamos.

- Não! O julgamento não somos nós quem fazemos, mas sim Deus. Não é uma capacidade nossa, mas sim um dom que ele nos concede para fazermos o trabalho. E não cabe a nós achar que o que aconteceu com aquele rapaz foi merecido e muito menos nos alegrarmos com isso.

- Desculpe, mas eu não concordo com você Mirian. – Ele responde e então se vira para olhar para ela. 

– Nós julgamos porque nos foi confiado tal missão. E aquele rapaz recebeu o que merecia, e eu me alegro com isso sim. Fico feliz que tenha sido ele a morrer e não aquela pobre atendente, ou aquele senhor.

- Sua visão está turvada pelo ódio. Afaste esse sentimento do seu coração Lucas. Ódio e raiva tendem a nos cegar para a verdade e para o que é certo. Esses sentimentos podem te levar por caminhos tortuosos. Não deixe que eles dominem você. Não cabe a nós julgarmos aquele garoto, nós somos apenas ferramentas e não podemos ficar felizes com o que ocorreu.

Lucas sabe que Mirian provavelmente está certa e que ela só quer o melhor para ele, mas mesmo assim ele não consegue concordar com ela. Pela primeira vez desde que os dois estão juntos Lucas discorda de Mirian e se recusa a aceitar o que ela está lhe dizendo.

- Talvez você esteja certa Mirian, mas eu não vou concordar com você. Não consigo sentir pena daquele garoto, e fiquei satisfeito com o destino dele.

- Por favor, não faça isso Lucas. Não pense assim, isso pode te prejudicar muito. Esse não é o pensamento que um anjo deva ter.

Por mais que Mirian queira mudar a mente de Lucas, ela percebe pelo olhar dele que não será tão fácil assim e que não será ali que ela conseguirá fazer isso.

- Vamos embora. – Lucas fala para ela. – Quero descansar.

A tristeza toma conta de Mirian. Pela primeira vez ela sente que está falhando com Lucas. Seus olhos ficam molhados e ela acena positivamente com a cabeça para ele.

- Tudo bem Lucas. Nós encontramos depois. – Depois de falar ela some.

Lucas sabe que pode ter magoado sua mestra, mas ele não consegue concordar com ela.

POR VINÍCIUS VIEIRA DE FARIA

EM 28/02/2015.